terça-feira, 28 de abril de 2020






UMA VIAGEM PELA CIDADE DE BELO VALE, MINAS GERAIS, E A FAZENDA BOA ESPERANÇA, EM RESTAURAÇÃO, NO ANO DE 2013


A riqueza e a cultura material em um mundo sustentado pela escravidão

O Vale do Paraopeba/MG, margeado por uma miríade de rios e riachos, contornado por montanhas e serras que outrora forneceram ouro para a Coroa Portuguesa, constitui, neste artigo, o cenário principal. Surgidas na região Mineradora Central Oeste, a sociedade e a economia dessa circunscrição geográfica não se caracterizaram apenas pelo fausto do ouro. Plantações de milho, feijão, mandioca (considerada o "pão cotidiano") e outros alimentos cresceram nas terras férteis das fazendas e sítios. Da mesma maneira, a criação de animais, o comércio, a circulação e a troca de mercadorias foram a tônica das vilas e cidades no Oitocentos mineiro. Ainda hoje é possível percorrer o Vale e se deparar com pequenas cidades que, a despeito das dificuldades e dos entraves políticos, conseguiram preservar parte do seu centro "histórico". Afora as muitas e majestosas cachoeiras, o visitante também pode descobrir fazendas centenárias, como a Boa Esperança, localizada no município de Belo Vale, ou a Palestina, nos limites da cidade de Bonfim. Apesar de poucos, esses exemplares constituem importantes referenciais, que permitem ao pesquisador recompor e acompanhar as transformações ocorridas na região, seja em função do tempo, seja pelas mudanças de estilos, padrões estéticos e arquitetônicos.

Do mesmo modo, os artefatos dispostos nos museus - mesmo que de forma aleatória e pouco sistemática - e aqueles localizados por meio das imagens fotográficas (dos séculos XIX e XX) possibilitam elaborar um esboço da vida social e cultural da sociedade brasileira do passado, em especial da mineira. No entanto, os inventários oferecem, conforme nos lembra Meneses, "uma inflexão no circuito da vida social do artefato", lançando-se em outro ciclo, qual seja: o momento em que a vida de um dos cônjuges se esvai e a família precisa fazer o balanço material de toda uma existência.
Por meio das fontes cartorárias, pôde-se perceber como a cultura material das sociedades do passado configurava-se de forma vagarosa, permeada por detalhes, quase imperceptíveis aos olhos contemporâneos. Por isso, a tarefa que se impõe ao historiador é a mesma de um arqueólogo: trabalha-se com minúcias, às vezes os únicos vestígios que sobreviveram ao tempo e ao homem. Dessa forma, foi necessário adentrar figurativamente nas casas e fazendas, vasculhar quartos, salas, visitar hortas e pomares, para entender o que as pessoas vestiam, como se trajavam, se alimentavam e, principalmente, quais eram seus artefatos e como elas se relacionavam com os objetos da casa e do trabalho. Consequentemente, algumas questões se impuseram.
O que significava ter alguns objetos, como pianos, malas de viagem, livros ou "uma máquina de fazer água gasosa", em 1877? Ou ser proprietário de "uma posse de pescaria no rio Paraopeba", em 1882. Até que ponto ser dono de uma grande escravaria associava-se aos artefatos luxuosos e sofisticados? Ao longo dos quase oito decênios analisados, foi possível perceber mudanças e permanências nos modos de vida, atitudes, gestos e hábitos? É pertinente pensar que novos padrões sociais e culturais estavam consolidando-se no final do século XIX? Se a resposta for afirmativa, quais padrões se configuraram diante dos diferentes estratos sociais? E de que forma? A realidade socioeconômica daquela região estava em conformidade com o que acontecia em outras partes do território brasileiro, antes e depois do fim da escravidão?
Ante tantas interrogações, a análise se iniciou por aquelas questões que dizem respeito aos padrões estéticos, classificatórios e axiológicos. Qual era a fronteira entre um objeto tido como novo e outro avaliado e descrito como antigo pelos "louvados"? Qual o real significado, ou melhor, como algumas palavras e expressões - que aparecem frequentemente - eram compreendidas e absorvidas no cotidiano daquela população? Por exemplo: o "engenho velho", a "cama ordinária", a "xícara inglesa de asa quebrada", o "moinho muito esbangalhado", a "caixa em bom uso feita cá", a "cama aparelhada", o "lenço adamascado", as "cantoneiras de mármore" etc.?
A associação entre a fazenda da Boa Esperança, tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, e o seu inventário (1905), mais de 150 anos depois de sua construção, representa aqui um importante ponto de inflexão. A distância temporal que separa a construção e o documento permite traçar comparações não só entre diferentes momentos históricos, mas também entre, pelo menos, duas realidades distintas. Contradições que se expressam na mão-de-obra utilizada (escrava e livre), nos novos referenciais de riqueza (escravos versus terras) e na introdução de novos elementos materiais, como se pode notar a seguir.
Em 1905, a fazenda da Boa Esperança pertencia ao coronel José Ferreira de Mendonça, casado com dona Luiza Ferreira de Mendonça.(Pais de João Batista Ferreira de Mendonça e avós de Paula Ferreira Duarte) O espólio, avaliado em 56:337$620 contos de réis, constituía a terceira maior fortuna encontrada no período pós-1888. No começo do século XX, Boa Esperança chegou a possuir 1.015 alqueires de terras e foi avaliada em 32:820$700 contos. Entre os "20 alqueires de mattos virgens, 50 de pasto de melloso, 305 de campos de criar, 300 de campos de um e outro lado da serra e 340 de terras de cultura", destacam-se, ainda, as sete casas distribuídas na vila e na área rural.
No entanto, era na Boa Esperança que o coronel Mendonça vivia com sua família. O massame da fazenda compreendia:
(...) Casas de vivenda, um correr de casas no terreiro, engenho de cilindro, engenho de serra, moinho, paiol, uma máquina de manteiga, seva de porcos, algumas cobertas de telhas, um grande pomar, três pastos pequenos ao redor da casa avaliados pelos louvados em 6:000$000 contos de reis.
Relacionada a essa descrição, sabe-se que grande parte da fazenda era "tapada por cerca de arame", o que contrastava com os arvoredos de espinhos e os muros de pedras dos séculos anteriores. Uma vez que os imóveis passaram a constituir o bem mais valioso da sociedade na época, era natural que fossem introduzidos meios mais eficazes (e, sobretudo, mais práticos) de proteção. Utilizar fios de arame era, agora, sem dúvida, muito mais econômico do que construir centenas de metros de muros de pedra ou barro, atividade antes confiada aos escravos.
O sistema de trabalho estabelecido depois de 1888 exigia adaptações por parte dos proprietários e trabalhadores. Adequações que passavam tanto pelos novos arranjos de mão-de-obra como também por outras formas de organização, sistematização e racionalização das atividades manuais e, posteriormente, industriais. Não é coincidência que, juntamente com as listas de despesas de funerais, contas de armazéns e receitas médicas, comuns nos inventários oitocentistas, comecem a surgir, no período pós-Abolição, gastos efetuados com a contratação dos "camaradas" e demais trabalhadores livres.
A incorporação de diferentes técnicas e atitudes no tocante às ocupações, aos equipamentos e aos utensílios constitui apenas um exemplo da nova relação homem/artefato estabelecida a partir de então. Entre os objetos do interior da Boa Esperança, vários catres, mesas, canapés, cadeiras de palhinha, "sophás", armários e guarda-louças foram identificados. Equipamentos como o novo debulhador de milho importado da América do Norte, os engenhos de serrar madeira, a máquina de fazer manteiga, o engenho de cilindro, só para citar alguns itens, permitem identificar como homens e mulheres estavam atentos às novas formas de processar os alimentos.
Do mesmo modo, observa-se uma sensível alteração nos padrões socioculturais no interior da moradia. O aparecimento e a difusão dos lavatórios de ferro são algumas das manifestações dessa sutil, mas irreversível, metamorfose, que envolve novas maneiras e posturas em relação ao corpo e à higiene dos moradores. No que tange ao asseio das casas, os relatos dos viajantes estrangeiros ressaltam a sujeira das cozinhas brasileiras e a desorganização das moradias na primeira metade do Oitocentos, independentemente do grupo social no qual as famílias estavam inseridas. O difícil acesso a equipamentos e à água - disponíveis somente em chafarizes e cisternas - deve ser levado em consideração. Por isso, a presença significativa dos lavatórios de ferro, bem como as descrições sobre o encanamento de água que começam a aparecer no final do período, são indicadores de novos padrões socioculturais que se fixavam lentamente na sociedade.
Conclusão
As análises realizadas aqui evidenciaram, enfim, que manter o plantel de cativos até os momentos que antecederam o fim do trabalho compulsório, não constituiu, por parte da sociedade, uma preferência pelos padrões escravistas ou uma predisposição para a manutenção da escravatura. Sem incentivos e políticas específicas, como os destinados às regiões agroexportadoras, manter a escravaria até quando fosse possível representou uma "alternativa" admissível naquele momento. Por isso, o "apego" dos mineiros à posse de escravos destacado por Roberto Martins, ou a "mentalidade aristocrática" de João Fragoso e Manolo Florentino, devem ser compreendidos aqui com ressalvas, principalmente no que tange às diferentes temporalidades trabalhadas e ao tipo de produção e economia exercidas no Vale.
Se o fim da escravidão desestruturou temporariamente a sociedade e a economia, nota-se, por outro lado, que o final do século XIX - marcado agora pelo trabalho livre, pela República e pela transferência da Capital mineira - acabou introduzindo gradativamente novas posturas e maneiras de relacionar-se com os objetos da casa e do trabalho. A referência ao saneamento (água encanada), a maior utilização do vidro nas construções, a popularização do armário, a difusão do lavatório de ferro, do fogão de ferro e a incorporação de novos utensílios de trabalho, como o debulhador de milho trazido da América do Norte, indicam alterações significativas e irreversíveis nas estruturas interna e externa das moradias. Ademais, não é coincidência que o aparecimento das despesas com "camaradas", a menção às "casas de escolas" e gastos realizados com a educação dos filhos, conforme exemplifica o colégio de Congonhas do Campo, comecem a aparecer nesse período. Tais fatos anulam a dicotomia fausto versus decadência e sublinham que, embora a queda do patrimônio tenha sido expressiva, isso não se traduziu numa estagnação paralisante.
Do mesmo modo, se este estudo permitiu concluir que a redução do patrimônio, do tamanho médio das propriedades e a fragmentação dos espólios alteraram os referenciais de riqueza, sofisticação e luxo, por outro lado não se pode dizer que a significativa diminuição numérica do grupo A (5%), no começo do século XX, tenha colaborado para a formação de uma sociedade mais homogênea e com uma maior redistribuição da riqueza. Outras formas de controle social e econômico estavam sendo equacionadas a partir de então, como a valorização das terras sugere. Embora de forma discreta, percebe-se ainda que diversos investimentos, pouco a pouco, começaram a marcar novos ritmos sociais e econômicos. As ações na Companhia de Tecidos Santa Anna e as eventuais "cadernetas da Caixa Econômica da União Federal" ou da "Caixa Econômica do Estado de Minas Gerais" são alguns exemplos. Indícios de tempos balizados, agora, por distintas formas de arquitetar a riqueza, de interagir com a economia e de relacionar-se com os objetos da casa e do mundo do trabalho livre.
Constata-se, afinal, que, a partir dos anos 1990, vários estudos acerca dos elementos materiais, do patrimônio, da fortuna, da pobreza e da organização da estrutura doméstica da família e da sociedade em diferentes localidades do Brasil foram empreendidos na historiografia brasileira. Confirma-se, da mesma forma, uma maior necessidade de inventariar e comparar os resultados auferidos até então. Desse modo, as questões levantadas neste artigo podem adquirir outras nuances, ganhar contornos e significados diferentes e/ou complementares daqueles aqui apresentados. Ressalve-se, porém, que novas perspectivas de análise, ao contemplarem diretrizes nacionais para a discussão das economias de abastecimento, não invalidam as especificidades da cultura material e da riqueza do Vale do Paraopeba.Legados de um passado escravista: cultura material e riqueza em Minas Gerais*

Heritages from the slavery past: material culture and wealth in Minas Gerais
Cláudia Eliane Parreiras Marques Martinez
Departamento de História, Universidade Estadual de Londrina/Paraná. Caixa Postal 6001. CEP 86051-990. Londrina. PR. Brasil. cepmarques@uol.comCaixa Postal 6001. CEP 86051-990. Londrina. PR. Brasil. cepmarques@uol.com.br